sábado, 4 de abril de 2009

umas e outras



São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,
leves
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas
nas suas conchas puras?


Eugenio de Andrade

terça-feira, 31 de março de 2009

lettera qui resta



Já não quero dicionários
consultados em vão.
Quero só a palavra
que nunca estará neles
nem se pode inventar.

Que resumiria o mundo
e o substituiria.

Mais sol do que o sol,
dentro da qual vivessemos
todos em comunhão,
mudos,
saboreando-a.

Carlos Drummond de Andrade

domingo, 29 de março de 2009

Percepções II



A porta da verdade estava aberta
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir
toda a verdade
porque a meia pessoa que entrava
só conseguia o perfil da meia verdade.
E segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
e os meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia os seus fogos.
Era dividida em duas metades
diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela
Nenhuma das duas era perfeitamente bela
E era preciso optar. Cada uma optou
Conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia.

Carlos Drummond de Andrade
Contos Plausíveis