sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Bagagem

Eu quero uma licença de dormir,
perdão pra descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o sono profundo das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes.

Adélia Prado

(in "Bagagem" São Paulo: Ed.Siciliano, 1993)

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

O sobrevivente

O SOBREVIVENTE

Impossível compor um poema a essa altura da evolução da humanidade.
Impossível escrever um poema - uma linha que seja - de verdadeira poesia.
O último trovador morreu em 1914.
Tinha um nome de que ninguém se lembra mais.

Há máquinas terrivelmente complicadas para as necessidades mais simples.
Se quer fumar um charuto aperte um botão.
Paletós abotoam-se por eletricidade.
Amor se faz pelo sem-fio.
Não precisa estômago para digestão.

Um sábio declarou a O Jornal que ainda falta
muito para atingirmos um nível razoável de
cultura. Mas até lá, felizmente, estarei morto.

Os homens não melhoram
e matam-se como percevejos.
Os percevejos heróicos renascem.
Inabitável, o mundo é cada vez mais habitado.
E se os olhos reaprendessem a chorar seria um segundo dilúvio.

(Desconfio que escrevi um poema.)

Carlos Drummond de Andrade

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Janela d'alma

Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino.
E eu me sinto completamente feliz.
Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas,
que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem,
outros que só existem diante das minhas janelas, e outros,
finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.

Cecília Meireles

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Vasto mundo

Mundo mundo vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração



Carlos Drummond de Andrade

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Teus olhos

Teus Olhos

Teus olhos são a pátria do relâmpago e da lágrima,
silêncio que fala,
tempestades sem vento, mar sem ondas,
pássaros presos, douradas feras adormecidas,
topázios ímpios como a verdade,
outono numa clareira de bosque onde a luz canta no ombro
duma árvore e são pássaros todas as folhas,
praia que a manhã encontra constelada de olhos,
cesta de frutos de fogo,
mentira que alimenta,
espelhos deste mundo, portas do além,
pulsação tranquila do mar ao meio-dia,
universo que estremeca,
paisagem solitária.

Octavio Paz, in "Liberdade sob Palavra"

Sementes de Cecília

Responder a perguntas não respondo.
Perguntas impossíveis não pergunto.
Só do que sei de mim aos outros conto:
de mim, atravessada pelo mundo.

Toda a minha experiência, o meu estudo,
sou eu mesma que, em solidão paciente,
recolho do que em mim observo e escuto
muda lição, que ninguém mais entende.

O que sou vale mais do que o meu canto.
Apenas em linguagem vou dizendo
caminhos invisíveis por onde ando.

Tudo é secreto e de remoto exemplo.
Todos ouvimos, longe, o apelo do Anjo.
E todos somos pura flor de vento.
Cecília Meireles

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Amor Antigo

O amor antigo vive de si mesmo,
não de cultivo alheio ou de presença.
Nada exige nem pede. Nada espera,
mas do destino vão nega a sentença.

O amor antigo tem raízes fundas,
feitas de sofrimento e de beleza.
Por aquelas mergulha no infinito,
e por estas suplanta a natureza.

Se em toda parte o tempo desmorona
aquilo que foi grande e deslumbrante,
a antigo amor, porém, nunca fenece
e a cada dia surge mais amante.

Mais ardente, mas pobre de esperança.
Mais triste? Não. Ele venceu a dor,
e resplandece no seu canto obscuro,
tanto mais velho quanto mais amor.

Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

As sinapses

Sou um monte intransponível no meu próprio caminho.

Mas às vezes por uma palavra tua ou por uma palavra lida, de repente tudo se esclarece.

Clarice Lispector

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Ai, quem me dera

Ai quem me dera, terminasse a espera
E retornasse o canto simples e sem fim...
E ouvindo o canto se chorasse tanto
Que do mundo o pranto se estancasse enfim

Ai quem me dera percorrer estrelas
Ter nascido anjo e ver brotar a flor
Ai quem me dera uma manhã feliz
Ai quem me dera uma estação de amor

Ah! Se as pessoas se tornassem boas
E cantassem loas e tivessem paz
E pelas ruas se abraçassem nuas
E duas a duas fossem ser casais

Ai quem me dera ao som de madrigais
Ver todo mundo para sempre afins
E a liberdade nunca ser demais
E não haver mais solidão ruim

Ai quem me dera ouvir o nunca mais
Dizer que a vida vai ser sempre assim
E finda a espera ouvir na primavera
Alguem chamar por mim...

Vinícius de Moraes

terça-feira, 29 de setembro de 2009

A palavra mágica

A palavra mágica

Certa palavra dorme na sombra
de um livro raro.
Como desencantá-la?
É a senha da vida
a senha do mundo.
Vou procurá-la.

Vou procurá-la a vida inteira
no mundo todo.
Se tarda o encontro, se não a encontro,
não desanimo,
procuro sempre.

Procuro sempre, e minha procura
ficará sendo
minha palavra.

Carlos Drummond de Andrade

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Voar

Poesia é voar fora da asa




Manoel de Barros

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Leia de baixo para cima

E a genialidade de Clarice pede que seja lido de baixo para cima

Não te amo mais.
Estarei mentindo se disser que
Ainda te quero como sempre quis.
Tenho certeza de que
Nada foi em vão.
Sei dentro de mim que
Você não significa nada.
Não poderia dizer nunca que
Alimento um grande amor.
Sinto cada vez mais que
Já te esqueci!
E jamais usarei a frase
Eu te amo!
Sinto, mas tenho que dizer a verdade:
É tarde demais…


apud Clarice Lispector

sábado, 15 de agosto de 2009

café de letras

Regresso devagar ao teu sorriso como quem volta a casa.
Faço de conta que não é nada comigo.
Distraído percorro o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro.
Devagar te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa,
compro um livro, entro no amor como em casa.



Manuel Antonio Pina

sábado, 1 de agosto de 2009

Quem perguntou por ti...


Quem me chamou
Me procurou
Quem quis ouvir minha voz
Quem escreveu
Quem perguntou por mim
Quem falou e chorou?
Quem me telefonou
Seus dramas contou
Pois se sentia sozinho
É meu amigo
É isso que eu tenho no mundo, em qualquer lugar
Moram no Rio
São paulo e Salvador
Em Barcelona estão
Escrevem de Paris
Roma e Sangrilá
É bom assim
Ser a voz que alegra alguém além do oceano
Além das nações
A brasileira voz
Que se emociona
Que acredita e fala e vive o humano
Amor

Milton Nascimento e Fernando Brant

sábado, 25 de julho de 2009

Síndrome


Todavía tengo casi todos mis dientes
casi todos mis cabellos y poquísimas canas
puedo hacer y deshacer el amor
trepar una escalera de dos en dos
y correr cuarenta metros detrás del ómnibus
o sea que no debería sentirme viejo
pero el grave problema es que antes
no me fijaba en estos detalles.

Mario Benedetti

terça-feira, 21 de julho de 2009

Segue


    Segue o teu destino,
    Rega as tuas plantas,
    Ama as tuas rosas.
    O resto é a sombra
    De árvores alheias.

    A realidade
    Sempre é mais ou menos
    Do que nós queremos.
    Só nós somos sempre
    Iguais a nós-próprios.

    Suave é viver só.
    Grande e nobre é sempre
    Viver simplesmente.
    Deixa a dor nas aras
    Como ex-voto aos deuses.

    Vê de longe a vida.
    Nunca a interrogues.
    Ela nada pode
    Dizer-te. A resposta
    Está além dos deuses.

    Mas serenamente
    Imita o Olimpo
    No teu coração.
    Os deuses são deuses
    Porque não se pensam.

    Ricardo Reis, 1-7-1916( Fernando Pessoa)

domingo, 12 de julho de 2009

vela dos quereres


Lavar meus olhos
Pra ver se eu enxergo mais
Mirar o abismo e descobrir o cais
Quanto mais alto, mais longe esse descortinar
Abrir os rochedos, esfinges, mistérios
Achar bem dentro o mar
Velejo a lágrima
Nem sei que oceano esse será
Se é africano, mediterrâneo, pacífico ou terrível
Mas sempre mar
Vela dos quereres, miragem só
No horizonte gelo e azul sem fim
Levam a ti
Levam a nós
Levam a mim
Querer ter asas
Sobrevoa a vida
Sobretudo paira acima
O submundo nos encara firme e o caos convida
São fusões, ritos, atritos
O vento, a pedra, grito e ar
Luz é vertigem, silêncio é coragem
Alegria é encontro, centro está
Dentro e fora
Que importa agora?
Que tudo é movimento e paz
Levando ao fundo, levando ao mundo
Levando ao cais
Lavar meus olhos
Pra ver se eu enxergo mais
Mirar o abismo e descobrir o cais


Aldir Blanc

domingo, 5 de julho de 2009

Fases da (ua


Lua cheia
Ilumina a minha vida
Pura lâmina polida
Lábio,leite, peito, mãe
Nua idéia
Pavão de plumagem branca
Moça de risada franca
Meia taça de champagne
Minha seta
Atravessa o meu amado
Linha reta
Do real pro outro lado
Lua nova
Tudo agora recomeça
O mundo está posto a prova
Muda a luz e muda a cor
Lua, lua
Ilumina esta promessa
Com tua vontade crua
Ilumina o meu amor


Caetano Veloso e João Donato ( letra e música)

terça-feira, 30 de junho de 2009

A vitória nossa de cada dia


Olhe para todos ao seu redor e veja o que temos feito de nós e a isso considerado vitória nossa de cada dia.
Não temos amado, acima de todas as coisas.
Não temos aceite o que não se entende porque não queremos passar por tolos.
Temos amontoado coisas e seguranças por não nos termos um ao outro.
Não temos nenhuma alegria que não tenha sido catalogada.
Temos construído catedrais, e ficado do lado de fora pois as catedrais que nós mesmos construímos, tememos que sejam armadilhas.
Não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida larga e nós a tememos.

Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro de nós que por amor diga: tens medo.
Temos organizado associações e clubes sorridentes onde se serve com ou sem soda.
Temos procurado nos salvar mas sem usar a palavra salvação para não nos envergonharmos de ser inocentes.
Não temos usado a palavra amor para não termos de reconhecer a sua contextura de ódio, de amor, de ciúme e de tantos outros contraditórios.
Temos mantido em segredo a nossa morte para tornar a nossa vida possível.
Muitos de nós fazem arte por não saber como é a outra coisa.
Temos disfarçado com falso amor a nossa indiferença, sabendo que nossa indiferença é angústia disfarçada.
Temos disfarçado com o pequeno medo o grande medo maior e por isso nunca falamos no que realmente importa.
Falar no que realmente importa é considerado uma gafe.
Não temos adorado por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses.
Não temos sido puros e ingénuos para não rirmos de nós mesmos e para que no fim do dia possamos dizer «pelo menos não fui tolo» e assim não ficarmos perplexos antes de apagar a luz. Temos sorrido em público do que não sorriríamos quando ficássemos sozinhos.
Temos chamado de fraqueza a nossa candura.
Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo.
E a tudo isso consideramos a vitória nossa de cada dia.

Clarice Lispector, in 'Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres'

quarta-feira, 24 de junho de 2009

E ponto final.

A injustiça passeia pelas ruas com passos seguros.
Os dominadores se estabelecem por dez mil anos.
Só a força os garante.
Tudo ficará como está.
Nenhuma voz se levanta além da voz dos dominadores.
No mercado da exploração se diz em voz alta:
Agora acaba de começar:
E entre os oprimidos muitos dizem:
Não se realizará jamais o que queremos!
O que ainda vive não diga: jamais!
O seguro não é seguro. Como está não ficará.
Quando os dominadores falarem
falarão também os dominados.
Quem se atreve a dizer: jamais?
De quem depende a continuação desse domínio?
De quem depende a sua destruição?
Igualmente de nós.
Os caídos que se levantem!
Os que estão perdidos que lutem!
Quem reconhece a situação como pode calar-se?
Os vencidos de agora serão os vencedores de amanhã.
E o "hoje" nascerá do "jamais".

Bertold Brecht

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Conversaciones con mamá


ya se que por donde andas no hay tiempo ni espacio, pero me escucha mamá.


No es solo un retrato en mi habitación....

Gracias Sopita por compartir las palabras a tu papá .


Gracias madrecita yo soy feliz por haber te conocido

http://www.youtube.com/watch?v=znxJGABVz3c

domingo, 21 de junho de 2009

Sigue escribiendo para no cantar


Para mi amigo Quino, lo extraño
Aprendé portuñol o yo empezó mis clases de español jajajaja ( yo ya empezé)


o bicho alfabeto
tem vinte e três patas
ou quase

por onde ele passa
nascem palavras
e frases

com frases
se fazem asas
palavras
o vento leve

o bicho alfabeto
passa
fica o que não se escreve


Paulo Leminski

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Aqui e agora


O melhor lugar do mundo é aqui,
E agora
Aqui onde indefinido
Agora que é quase quando
Quando ser leve ou pesado
Deixa de fazer sentido
Aqui de onde o olho mira
Agora que ouvido escuta
O tempo que a voz não fala
Mas que o coração tributa
O melhor lugar do mundo é aqui,
E agora
Aqui onde a cor é clara
Agora que é tudo escuro
Viver em Guadalajara
Dentro de um figo maduro
Aqui longe em Nova Deli
Agora sete, oito ou nove
Sentir é questão de pele
Amor é tudo que move
O melhor lugar do mundo é aqui,
E agora
Aqui perto passa um rio
Agora eu vi um lagarto
Morrer deve ser tão frio
Quanto na hora do parto
Aqui fora de perigo
Agora dentro de instantes
Depois de tudo que eu digo
Muito embora muito antes
O melhor lugar do mundo é aqui...

Gilberto Gil


quarta-feira, 17 de junho de 2009

Teteús , quero- quero lero lero

Lembrei desta música de Caetano para esta foto.

"Alguma coisa
Está fora da ordem
Fora da nova ordem
Mundial..."

Mas este assunto fica para outro momento
Para este hoje escolhi esta:



No fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto
a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela - silêncio perpétuo
extinto por lei todo o remorso,
maldito seja quem olhar pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais
mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos saem todos a passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas.

paulo leminski( do poema Bem no fundo)

domingo, 14 de junho de 2009

Erra uma vez


 nunca cometo o mesmo erro
duas vezes
já cometo duas três
quatro cinco seis
até esse erro aprender
que só o erro tem vez




Paulo Leminski


sexta-feira, 12 de junho de 2009

Entre laçadas

É a sua vida que eu quero bordar na minha
Como se eu fosse o pano e você fosse a linha
E a agulha do real nas mãos da fantasia
Fosse bordando ponto a ponto nosso dia-a-dia
E fosse aparecendo aos poucos nosso amor
Os nossos sentimentos loucos, nosso amor
O zig-zag do tormento, as cores da alegria
A curva generosa da compreensão
Formando a pétala da rosa, da paixão
A sua vida o meu caminho, nosso amor
Você a linha e eu o linho, nosso amor
Nossa colcha de cama, nossa toalha de mesa
Reproduzidos no bordado
A casa, a estrada, a correnteza
O sol, a ave, a árvore, o ninho da beleza


Gilberto Gil

terça-feira, 9 de junho de 2009

Uma questão de palavras



Tantas palavras
Que eu conhecia
Só por ouvir falar, falar
Tantas palavras
Que ela gostava
E repetia
Só por gostar

Não tinham tradução
Mas combinavam bem
Toda sessão ela virava uma atriz
``Give me a kiss, darling''
``Play it again''

Trocamos confissões, sons
No cinema, dublando as paixões
Movendo as bocas
Com palavras ocas
Ou fora de si
Minha boca
Sem que eu compreendesse
Falou c'est fini
C'est fini

Tantas palavras
Que eu conhecia
E já não falo mais, jamais
Quantas palavras
Que ela adorava
Saíram de cartaz

Nós aprendemos
Palavras duras
Como dizer perdi, perdi
Palavras tontas
Nossas palavras
Quem falou não está mais aqui


Chico Buarque

domingo, 31 de maio de 2009

Como é por dentro outra pessoa?



Como é por dentro outra pessoa
Quem é que o saberá sonhar?
A alma de outrem é outro universo
Com que não há comunicação possível,
Com que não há verdadeiro entendimento.

Nada sabemos da alma
Senão da nossa;
As dos outros são olhares,
São gestos, são palavras,
Com a suposição de qualquer semelhança
No fundo.

Fernando Pessoa, 1934

sábado, 30 de maio de 2009

¿De qué se ríe?



(Seré curioso)

En una exacta
foto del diario
señor ministro
del imposible

vi en pleno gozo
y en plena euforia
y en plena risa
su rostro simple

seré curioso
señor ministro
de qué se ríe
de qué se ríe

de su ventana
se ve la playa
pero se ignoran
los cantegriles

tienen sus hijos
ojos de mando
pero otros tienen
mirada triste

aquí en la calle
suceden cosas
que ni siquiera
pueden decirse

los estudiantes
y los obreros
ponen los puntos
sobre las íes

por eso digo
señor ministro
de qué se ríe
de qué se ríe

usté conoce
mejor que nadie
la ley amarga
de estos países

ustedes duros
con nuestra gente
por qué con otros
son tan serviles

cómo traicionan
el patrimonio
mientras el gringo
nos cobra el triple

cómo traicionan
usté y los otros
los adulones
y los seniles

por eso digo
señor ministro
de qué se ríe
de qué se ríe

aquí en la calle
sus guardias matan
y los que mueren
son gente humilde

y los que quedan
llorando de rabia
seguro piensan
en el desquite

allá en la celda
sus hombres hacen
sufrir al hombre
y eso no sirve

después de todo
usté es el palo
mayor de un barco
que se va a pique

seré curioso
señor ministro
de qué se rie
de qué se ríe.

Mario Benedetti

A foto e o texto valem para todos, todos os países....

sexta-feira, 29 de maio de 2009

A Exceção e a Regra



Estranhem o que não for estranho.
Tomem por inexplicável o habitual.
Sintam-se perplexos ante o cotidiano.
Tratem de achar um remédio para o abuso
Mas não se esqueçam de que o abuso é sempre a regra.

Bertolt Brecht

domingo, 24 de maio de 2009

Procurando o quê?



O que a gente procura muito e sempre não é isto nem aquilo.
É outra coisa.
Se me perguntam que coisa é essa, não respondo, porque não é da conta de ninguém o que estou procurando.
Mesmo que quisesse responder, eu não podia.
Não sei o que procuro.
Deve ser por isso mesmo que procuro.
Me chamam de bobo porque vivo olhando aqui e ali, nos ninhos, nos caramujos, nas panelas, nas folhas de bananeiras, nas gretas do muro, nos espaços vazios.
Até agora não encontrei nada.
Ou encontrei coisas que não eram a coisa procurada sem saber, e desejada.
Meu irmão diz que não tenho mesmo jeito, porque não sinto o prazer dos outros na água do açude, na comida, na manga e procuro inventar um prazer que ninguém sentiu ainda.
Ele tem experiência de mato e de cidade, sabe explorar os mundos, as horas.
Eu tropeço no possível e não desisto de fazer a descoberta do que tem dentro da casca do impossível.
Um dia descubro.
Vai ser fácil, existente, de pegar na mão e sentir.
Não sei o que é.
Não imagino forma, cor, tamanho.
Nesse dia vou rir de todos.
Ou não.
A coisa que me espera, não poderei mostrar a ninguém.
Há de ser invisível para todo mundo, menos para mim, que de tanto procurar fiquei com merecimento de achar e direito de esconder.


Carlos Drummond de Andrade

sábado, 23 de maio de 2009

Sem Budismo



Poema que é bom
acaba zero a zero.
Acaba com.
Não como eu quero.
Começa sem.
Com, digamos, certo verso,
veneno de letra,
bolero. Ou menos.
Tira daqui, bota dali,
um lugar, não caminho.
Prossegue de si.
Seguro morreu de velho,
e sozinho.

[do livro Distraídos Venceremos]

Paulo Leminski

domingo, 17 de maio de 2009

Liberdade, ainda que poesia.



Morreu hoje Mario Benedetti
As palavras de hoje já estavam escolhidas
Mudei a foto em homenagem a este ótimo escritor.


Escrevo. E pronto.
Escrevo porque preciso
preciso porque estou tonto.
Ninguém tem nada com isso.
Escrevo porque amanhece.
E as estrelas lá no céu
Lembram letras no papel,
Quando o poema me anoitece.
A aranha tece teias.
O peixe beija e morde o que vê.
Eu escrevo apenas.
Tem que ter por quê?

Paulo Leminski

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Escrevendo




Não me lembro mais onde foi o começo, foi por assim dizer escrito todo ao mesmo tempo.
Tudo estava ali, ou devia estar, como no espaço-temporal de um piano aberto, nas teclas simultâneas do piano.
Escrevi procurando com muita atenção o que se estava organizando em mim e que só depois da quinta paciente cópia é que passei a perceber.
Meu receio era de que, por impaciência com a lentidão que tenho em me compreender, eu estivesse apressando antes da hora um sentido.
Tinha a impressão de que, mais tempo eu me desse, e a história diria sem convulsão o que ela precisava dizer.
Cada vez mais acho tudo uma questão de paciência, de amor criando paciência, de paciência criando amor.

domingo, 10 de maio de 2009

Elogio do amor



"Há coisas que não são para se perceberem. Esta é uma delas. Tenho uma coisa para dizer e não sei como hei-de dizê-la. Muito do que se segue pode ser, por isso, incompreensível.
A culpa é minha. O que for incompreensível não é mesmo para se perceber. Não é por falta de clareza. Serei muito claro. Eu próprio percebo pouco do que tenho para dizer. Mas tenho de dizê-lo.
O que quero é fazer o elogio do amor puro.
Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade.
Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão.
Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática. Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria.
Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em "diálogo".
O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios. Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões.
O amor transformou-se numa variante psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem. A paixão, que devia ser desmedida, é na medida do possível. O amor tornou-se uma questão prática. O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam "praticamente" apaixonadas.
Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço.
Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do "tá bem, tudo bem", tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananóides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas.
Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo?
O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso "dá lá um jeitinho sentimental".
Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos. Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade.
Amor é amor. É essa beleza. É esse perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma questão de azar. O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto.
O amor é uma coisa, a vida é outra. A vida às vezes mata o amor. A "vidinha" é uma convivência assassina.
O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima.
O amor não se percebe. Não é para perceber. O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende.
O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser.
O amor é uma coisa, a vida é outra. A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe. Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém.
Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não esta lá quem se ama, não é ela que nos acompanha - é o nosso amor, o amor que se lhe tem.
Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado do que quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir.
A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a Vida inteira, o amor não. Só um mundo de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também."

Miguel Esteves Cardoso

Há dois anos vi este texto no Lisboa que amanhece.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

O seu santo nome



Não facilite com a palavra amor.
Não a jogue no espaço, bolha de sabão.
Não se inebrie com o seu engalanado som.
Não a empregue sem razão acima de toda razão (e é raro).
Não brinque, não experimente, não cometa a loucura sem remissão
de espalhar aos quatro ventos do mundo essa palavra
que é toda sigilo e nudez, perfeição e exílio na Terra.
Não a pronuncie.

Carlos Drummond de Andrade

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Brisa ou Ventania


...É curioso como não sei dizer quem sou.
Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer.
Sobretudo tenho medo de dizer porque no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo...
Sou como você me vê.
Posso ser leve como uma brisa ou forte como uma ventania,
Depende de quando e como você me vê passar.
Não me dêem fórmulas certas, por que eu não espero acertar sempre.
Não me mostrem o que esperam de mim, por que vou seguir meu coração.
Não me façam ser quem não sou.
Não me convidem a ser igual, por que sinceramente sou diferente.
Não sei amar pela metade.
Não sei viver de mentira.
Não sei voar de pés no chão.
Sou sempre eu mesma, mas com certeza não serei a mesma pra sempre...

Clarice Lispector

sábado, 2 de maio de 2009

Poema em linha reta



A partir do texto da Flavita, boneca de porcelana, no blog e agora José ?, lembrei deste poema de Fernando Pessoa como Álvaro de Campos.
Afinal todos atualmente são celebridades, big person etc etc...
Então só prá relembrar deste homem de rara beleza: Fernando e suas Pessoas

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó principes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Álvaro de Campos

Definitivo



Definitivo, como tudo o que é simples.
Nossa dor não advém das coisas vividas,
mas das coisas que foram sonhadas e não se cumpriram.

Sofremos por quê? Porque automaticamente esquecemos
o que foi desfrutado e passamos a sofrer pelas nossas projeções
irrealizadas, por todas as cidades que gostaríamos de ter conhecido ao lado do nosso amor e não conhecemos, por todos os filhos que gostaríamos de ter tido junto e não tivemos,por todos os shows e livros e silêncios que gostaríamos de ter compartilhado,
e não compartilhamos.
Por todos os beijos cancelados, pela eternidade.

Sofremos não porque nosso trabalho é desgastante e paga pouco, mas por todas as horas livres que deixamos de ter para ir ao cinema, para conversar com um amigo, para nadar, para namorar.

Sofremos não porque nossa mãe é impaciente conosco, mas por todos os momentos em que poderíamos estar confidenciando a ela nossas mais profundas angústias se ela estivesse interessada em nos compreender.

Sofremos não porque nosso time perdeu, mas pela euforia sufocada.

Sofremos não porque envelhecemos, mas porque o futuro está sendo confiscado de nós, impedindo assim que mil aventuras nos aconteçam, todas aquelas com as quais sonhamos e nunca chegamos a experimentar.

Por que sofremos tanto por amor?
O certo seria a gente não sofrer, apenas agradecer por termos conhecido uma pessoa tão bacana, que gerou em nós um sentimento intenso e que nos fez companhia por um tempo razoável,um tempo feliz.

Como aliviar a dor do que não foi vivido? A resposta é simples como um verso:

Se iludindo menos e vivendo mais!!!
A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida está no amor que não damos, nas forças que não usamos, na prudência egoísta que nada arrisca, e que, esquivando-se do sofrimento,perdemos também a felicidade.

A dor é inevitável.
O sofrimento é opcional...

Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, 30 de abril de 2009

Afetos e revolução encarnada



Se não houvesse montanhas!
Se não houvesse paredes!
Se o sonho tecesse malhas
e os braços colhessem redes!

Se a noite e o dia passassem
como nuvens, sem cadeias,
e os instantes da memória
fossem vento nas areias!

Se não houvesse saudade, solidão nem despedida...
Se a vida inteira não fosse, além de breve, perdida!
Eu não tinha cavalo de asas,
que morreu sem ter pascigo
E em labirintos se movem
Os fantasmas que persigo.

Cecìlia Meireles

Para Gabriela pela página 63...do instante existe
Conspirações cósmicas são assim:
Ganhe-se a prenda e ao abrir vivem-se flores de afeto.

sábado, 18 de abril de 2009

Cartas náuticas



Aqui nesta praia onde
Não há nenhum vestígio de impureza,
Aqui onde há somente
Ondas tombando ininterruptamente,
Puro espaço e lúcida unidade,
Aqui o tempo apaixonadamente
Encontra a própria liberdade.

Sophia de Mello Breyner Andresen

quinta-feira, 16 de abril de 2009

da minha janela vejo II



XIII

Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!
E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto ...

E conversamos toda a noite, enquanto
A via láctea, como um pálio aberto,
Cintila.
E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora: Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?

E eu vos direi: Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas.

Olavo Bilac

quarta-feira, 15 de abril de 2009

sobre um novo dia



Esperança é como o girassol,

que à toa se vira em direção ao sol.

Mas não é à toa.

Virar-se para o sol

é um ato de realização de fé.


Clarice Lispector

domingo, 12 de abril de 2009

Agora dentro de instantes...II



Gastei uma hora pensando um verso
que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo.
Ele está cá dentro
e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
inunda minha vida inteira.

Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, 10 de abril de 2009

vendedor de sonhos



Vendedor de sonhos
tenho a profissão viajante
de caixeiro que traz na bagagem
repertório de vida e canções

E de esperança
mais teimoso que uma criança
eu invado os quartos, as salas
as janelas e os corações

Frases eu invento
elas voam sem rumo no vento
procurando lugar e momento
onde alguem também queira cantá-las

Vendo os meus sonhos
e em troca da fé ambulante
quero ter no final da viagem
um caminho de pedra feliz

Tantos anos contando a história
de amor ao lugar que nasci
tantos anos cantando meu tempo
minha gente de fé me sorri
tantos anos de voz nas estradas
tantos sonhos que eu já vivi

esta música foi composta por Milton Nascimento/Fernando Brant

sábado, 4 de abril de 2009

umas e outras



São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,
leves
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas
nas suas conchas puras?


Eugenio de Andrade

terça-feira, 31 de março de 2009

lettera qui resta



Já não quero dicionários
consultados em vão.
Quero só a palavra
que nunca estará neles
nem se pode inventar.

Que resumiria o mundo
e o substituiria.

Mais sol do que o sol,
dentro da qual vivessemos
todos em comunhão,
mudos,
saboreando-a.

Carlos Drummond de Andrade

domingo, 29 de março de 2009

Percepções II



A porta da verdade estava aberta
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir
toda a verdade
porque a meia pessoa que entrava
só conseguia o perfil da meia verdade.
E segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
e os meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia os seus fogos.
Era dividida em duas metades
diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela
Nenhuma das duas era perfeitamente bela
E era preciso optar. Cada uma optou
Conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia.

Carlos Drummond de Andrade
Contos Plausíveis

sábado, 28 de março de 2009

Sugestão



Sede assim - qualquer coisa
serena, isenta, fiel.

Flor que se cumpre,
sem pergunta.

Onda que se esforça,
por exercício desinteressado.

Lua que envolve igualmente
os noivos abraçados
e os soldados já frios.

Também como este ar da noite:
sussurrante de silêncios,
cheio de nascimentos e pétalas.

Igual à pedra detida,
sustentando seu demorado destino.
E à nuvem, leve e bela,
vivendo de nunca chegar a ser.

À cigarra, queimando-se em música,
ao camelo que mastiga sua longa solidão,
ao pássaro que procura o fim do mundo,
ao boi que vai com inocência para a morte.

Sede assim qualquer coisa
serena, isenta, fiel.

Não como o resto dos homens.


Cecília Meireles

terça-feira, 24 de março de 2009

Ausência



Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

Carlos Drummond de Andrade

segunda-feira, 23 de março de 2009

Assim como Clarice




“Um nome para o que eu sou, importa muito pouco. Importa o que eu gostaria de ser.
O que eu gostaria de ser era uma lutadora. Quero dizer, uma pessoa que luta pelo bem dos outros. Isso desde pequena eu quis. Por que foi o destino me levando a escrever o que já escrevi, em vez de também desenvolver em mim a qualidade de lutadora que eu tinha? Em pequena, minha família por brincadeira chamava-me de ‘a protetora dos animais’. Porque bastava acusarem uma pessoa para eu imediatamente defendê-la.
[...] No entanto, o que terminei sendo, e tão cedo? Terminei sendo uma pessoa que procura o que profundamente se sente e usa a palavra que o exprima.
É pouco, é muito pouco.”


apud entrevista sobre o ideal de vida de Clarice Lispector

domingo, 22 de março de 2009

Meu olhar



O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de, vez em quando olhando para trás…
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem…
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras…
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo…

Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender …

O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo…

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos…
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar …
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar…

Alberto Caieiro

sexta-feira, 20 de março de 2009

Alguém cantando



Alguém cantando longe daqui
Alguém cantando longe, longe
Alguém cantando muito
Alguém cantando bem
Alguém cantando é bom de se ouvir
Alguém cantando alguma canção
A voz de alguém nessa imensidão
A voz de alguém que canta
A voz de um certo alguém
Que canta como que prà ninguém
A voz de alguém quando vem do coração
De quem mantém toda a pureza
Da natureza
Onde não há pecado nem perdão

Caetano Veloso

terça-feira, 17 de março de 2009

os desafinados também tem um coração...



Poeta, não é somente o que escreve.
É aquele que sente a poesia, se extasia sensível ao achado de uma rima à autenticidade de um verso.


Cora Coralina

segunda-feira, 16 de março de 2009

tudo tão simples



Criar não é imaginação
é correr o grande risco de se ter a realidade


Clarice Lispector

domingo, 15 de março de 2009

Nossa vozes, nossas vidas

Lendo o cartunista Ivan Lessa e depois ouvindo esta música vejo que precisamos globalmente juntar forças.
Não podemos retroceder diante do que se nos apresenta
Em frente por todos nós.

sexta-feira, 13 de março de 2009

o lume das palavras




Escuta, escuta: tenho ainda
uma coisa a dizer.
Não é importante, eu sei, não vai
salvar o mundo, não mudará
a vida de ninguém - mas quem
é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido
da vida de alguém?
Escuta-me, não te demoro.
É coisa pouca, como a chuvinha
que vem vindo devagar.
São três, quatro palavras, pouco
mais.
Palavras que te quero confiar,
para que não se extinga o seu lume,
o seu lume breve.
Palavras que muito amei,
que talvez ame ainda.
Elas são a casa, o sal da língua.


Eugénio de Andrade

quinta-feira, 12 de março de 2009

Flor do vento



Responder a perguntas não respondo.
Perguntas impossíveis não pergunto.
Só do que sei de mim aos outros conto:
de mim, atravessada pelo mundo.

Toda a minha experiência, o meu estudo,
sou eu mesma que, em solidão paciente,
recolho do que em mim observo e escuto
muda lição, que ninguém mais entende.

O que sou vale mais do que o meu canto.
Apenas em linguagem vou dizendo
caminhos invisíveis por onde ando.

Tudo é secreto e de remoto exemplo.
Todos ouvimos, longe, o apelo do Anjo.
E todos somos pura flor de vento.

Cecília Meireles

sábado, 7 de março de 2009

o que não faço por ti Gabriela....



A Loca Bandoca pediu e cá estou com a seguinte tarefa.

1 - Agarrar o livro mais próximo
2 - Abrir na pág. 161
3 - Procurar a quinta frase completa
4 - Colocar a frase no blog
5 - Indicar 5 pessoas para continuar a tarefa

O livro : Fernando Pessoa obra poética, que está aqui à minha esquerda.
edição n°5 1974 editora Cia José Aguilar

pág 161 paragrafo 5°

Quem bate à minha porta.

(Cancioneiro)

as minhas vítimas :-)DDD

1)BB
2)Luis
3)Quino
4)Flavita
5)Flavio

Missão completada com sucesso.Câmbio:-)

sexta-feira, 6 de março de 2009

violetando



A violeta é introvertida e sua introspecção é profunda.
Dizem que se esconde por modéstia.
Não é.
Esconde-se para poder captar o próprio segredo.
Seu quase-não-perfume é glória abafada mas exige da gente que o busque.
Não grita nunca seu perfume.
Violeta diz levezas que não se podem dizer.



Clarice Lispector

quarta-feira, 4 de março de 2009

growing together



O saber a gente aprende com os mestres e os livros.
A sabedoria, se aprende é com a vida e com os humildes.

Cora Coralina

segunda-feira, 2 de março de 2009

O catador de poemas



...O luar é a luz do sol que está dormindo...


Mario Quintana

(Mario Quintana - Poesia Completa
Da Preguiça como Método de Trabalho
Editora Nova Aguilar
p. 672)

domingo, 1 de março de 2009

Lembrando



Lembra-te
que todos os momentos
que nos coroaram
todas as estradas
radiosas que abrimos
irão achando sem fim
seu ansioso lugar
seu botão de florir
o horizonte
e que dessa procura
extenuante e precisa
não teremos sinal
senão o de saber
que irá por onde fomos
um para o outro
vividos

Mário Cesariny

sábado, 28 de fevereiro de 2009

Leia para mim...

"Canta para mim, ó Musa, o varão industrioso que, depois de haver saqueado a cidadela sagrada de Tróia, vagueou errante por inúmeras regiões, visitou cidades e conheceu o espírito de tantos homens; o varão que sobre o mar sofreu em, seu íntimo tormentos sem conta, lutando por sua vida e pelo regresso dos companheiros." - Homero - Odisséia, Rapsódia I

O amor às palavras, à leitura, o leitor um lindo filme, uma história que eu gostaria de ouvir novamente...

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

da minha janela vejo


Houve um tempo em que minha janela se abria
sobre uma cidade que parecia ser feita de giz.
Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco.
Era uma época de estiagem, de terra esfarelada,
e o jardim parecia morto.
Mas todas as manhãs vinha um pobre com um balde,
e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas.
Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse.
E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz.
Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor.
Outras vezes encontro nuvens espessas.
Avisto crianças que vão para a escola.
Pardais que pulam pelo muro.
Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais.
Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar.
Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega.
Ás vezes, um galo canta.
Às vezes, um avião passa.
Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino.
E eu me sinto completamente feliz.
Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas,
que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem,
outros que só existem diante das minhas janelas, e outros,
finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.

Fonte: Cecília Meireles(A arte de ser feliz)